Por Alexandre Ribeiro
APARECIDA, sexta-feira, 19 de novembro de 2010 (ZENIT.org) – Cardeal nomeado por Bento XVI para o consistório de 20 de novembro, Dom Raymundo Damasceno Assis, 73 anos, arcebispo de Aparecida e presidente do CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano), viu sua trajetória se entrelaçar com momentos marcantes da vida da Igreja e da sociedade nas últimas décadas.
Nesta segunda parte da entrevista a ZENIT, ele fala das Conferências de Santo Domingo e de Aparecida, de como acolheu a nomeação para o cardinalato e da ação da providência divina em sua vida.
ZENIT: Para se chegar a um documento final da Conferência de Santo Domingo também foi difícil, não?
Dom Damasceno: Sim. Em relação à Quarta Conferência, o que se discutia muito e criou vários problemas foi a questão da metodologia. Aí foi muito difícil, porque nós propúnhamos o método “ver, julgar e agir”, que era o tradicional das outras conferências, mas havia uma certa resistência por parte de alguns. Ou seja, alguns nem queriam um documento, que a Quarta Conferência não deveria produzir um documento. Havia um certo receio quanto à primeira parte, a análise da realidade, porque se partia do pressuposto de que a conclusão dependia dessa análise. É que os bispos ao fazer a análise da realidade, não a fazem como sociólogos, como economistas, como políticos, mas com olhos de pastores. E sempre à luz da Palavra de Deus, do Magistério da Igreja. Então se tem uma visão muito mais ampla dessa realidade. E a partir daí vão-se buscar também as respostas para os grandes desafios pastorais da Igreja no mundo atual e no nosso continente.
Isso tudo impediu a Conferência de avançar o mais rapidamente possível, de talvez fazer um trabalho muito mais frutuoso, fecundo, se de fato não houvesse uma certa resistência, uma certa indecisão quanto ao método e até mesmo quanto ao Documento de Trabalho. Não por parte do CELAM, que tinha clareza quanto ao método, pois a conferência tinha sido preparada dentro dessa metodologia, mas que encontrou uma certa resistência por parte de alguns. E por parte de alguns que tinham uma responsabilidade maior na condução da conferência. Isso atrasou os trabalhos. Perdemos dois dias, mais ou menos, nessa discussão estéril. No final, acabou-se voltando novamente à mesma metodologia. Ao se analisar o documento de Santo Domingo, vai-se encontrar, primeiro, uma grande reprodução do Documento de Trabalho. Segundo, vai-se encontrar também alguma contradição. De um lado, houve algo querendo evitar a metodologia do “ver, julgar e agir”, mas como era uma tradição nossa de trabalhar dentro dessa metodologia, não se conseguiu evitar totalmente isso. E você também vai encontrar números em Santo Domingo que fazem uma apologia do método. No fundo, o documento volta a esse método, apenas com algum acréscimo inicial de um texto do Magistério da Igreja ou da Sagrada Escritura e começa com uma profissão de fé cristológica. De qualquer maneira, o documento de Santo Domingo ainda é muito citado, foi citado inclusive pelo Documento de Aparecida. E tem inovações, por exemplo, a questão da inculturação do Evangelho. Quem lê hoje o Documento de Santo Domingo vê um texto muito rico, que reafirmou as conferências anteriores, inclusive a opção preferencial pelos pobres, não exclusiva nem excludente. E insistiu muito no trabalho da Igreja no campo da promoção humana.
Aquele foi um contexto muito diferente, por exemplo, da Conferência de Aparecida. Havia muito mais tensão na Conferência de Santo Domingo, além do mais pela própria situação da cidade, que nos oferecia hospedagens muito confortáveis, mas a estrutura para a realização dos trabalhos era um pouco deficiente. E sobretudo pelo contexto em que a conferência estava sendo celebrada, dentro dos 500 anos do descobrimento da América. Trata-se de um fato histórico muito analisado desde os mais diferentes aspectos e avaliado de maneira muito diferente. Positivamente por uns, muito negativamente por outros. Nesse contexto se situava a Quarta Conferência, embora a preocupação não fosse o acontecimento histórico em si do descobrimento da América, mas o trabalho evangelizador da Igreja, com suas luzes e sombras, realizado no período de 500 anos.
ZENIT: Depois de trabalhar ativamente na Quarta Conferência do Episcopado Latino-Americano, o senhor hospedou a Quinta, a Conferência de Aparecida, em 2007. Como foi?
Dom Damasceno: A Conferência de Aparecida realizou-se dentro de um clima muito tranquilo, de grande comunhão dos bispos, de muita espiritualidade, por ter sido realizada no Santuário, com a presença de tantos romeiros. Pela primeira vez, uma conferência se realiza num Santuário Nacional, um lugar com muita visitação de romeiros, de peregrinos. É uma situação nova. Os bispos tendo contato com o povo, sobretudo nos sábados e domingos, onde a presença dos romeiros é marcante. As missas eram todas abertas no Santuário e transmitidas pelos meios de comunicação social. Foi um contexto muito diferente das outras, que eram realizadas no interior de uma instituição, de um seminário. Em Santo Domingo, foi na Casa São Paulo, que era a casa dos cursilhistas; em Medellín, era o Seminário Maior; em Puebla, era também o Seminário Maior, portanto, lugares isolados, fechados. Ao passo que em Aparecida a conferência se realiza num Santuário, com suas celebrações abertas ao público, todas transmitidas. Tudo isso criou um ambiente espiritual, de muita piedade, de muita oração, sem nenhum contratempo.
A Conferência de Aparecida foi um verdadeiro acontecimento, um Pentecostes para a Igreja na América Latina. Os bispos vieram e não havia nem documento de trabalho. Era chamado de Documento de Preparação. Chegou-se sem nenhuma decisão de fazer ou não um documento. Mas o texto foi sendo gestado durante a conferência, com a participação de todos. Depois chegamos à conclusão com esse documento belíssimo, inspirador, muito pastoral, dentro da nossa realidade, e com um cunho missionário muito forte. E com um tema belíssimo, atual e válido para toda Igreja e todo cristão: discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que n’Ele todos tenham vida, e vida em abundância. Não houve um senão na Quinta Conferência. Nós criamos uma estrutura que facilitou os trabalhos. O Santo Padre foi acolhido calorosamente, afetuosamente, alegremente por todos os peregrinos em Aparecida. Foi acolhido aqui no Seminário Maior Bom Jesus com a sua comitiva, hospedado de uma maneira digna, porém simples, sóbria, que agradou a todos. De modo que não houve um senão na Quinta Conferência, seja em sua preparação, seja em sua realização.
ZENIT: Como o senhor acolheu a nomeação para o cardinalato por Bento XVI?
Dom Damasceno: Vejo nessa nomeação do Papa primeiro uma atenção, um apreço pela Igreja da América Latina, sendo eu o presidente do CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano). É um apreço ao Brasil também, ao Santuário, a Aparecida, porque Aparecida é representativa dentro do contexto religioso do Brasil. Embora pequena, é insigne e muito querida pelos brasileiros, por estar aí o Santuário de sua padroeira.
Bento XVI é um Papa que está buscando o diálogo com o mundo moderno, diálogo da fé com a razão. Nós não devemos ter medo e nos voltar para o interior da Igreja. Pelo contrário, temos de dialogar com esse mundo atual, em todos os ambientes, e dar nossa contribuição, anunciando e testemunhando os valores humanos e cristãos, na sociedade de hoje, e assumindo com espírito critico o que há de positivo nas culturas modernas. Mostrar que a fé não é algo irracional, absurdo; mas a fé, além de ser dom de Deus, evidentemente se fundamenta na racionalidade do homem. O homem crê porque é razoável acreditar, isso corresponde também a sua estrutura intelectual e a sua abertura à transcendência.
ZENIT: Ao rever a sua trajetória, como o senhor vê a mão da Providência em sua vida?
Dom Damasceno: A Providência sempre nos surpreende. Primeiro porque a gente não conhece o futuro. Da minha parte, eu confio na providência de Deus. Ele sempre nos conduz, tem seus planos em relação a cada um de nós, para a humanidade. Corresponde a nós aceitar aquilo que acontece, no espírito de fé, sabendo que Ele nos dirige. Ao se apresentar uma missão, que não buscamos nem procuramos, mas que é fruto do desígnio de Deus e de sua providência, nós temos de confiar na sua graça e ajuda. Ele vai nos ajudar a realizar a tarefa para a qual nos chama. Deus não escolhe a pessoa em função da sua preparação, qualificação. Ele pode se servir evidentemente disso. Mas quando tem seus projetos, Ele chama gratuitamente. E dá as graças para que a pessoa realize esta missão. Assim sempre foi na história da salvação, com os profetas e na história da Igreja. O importante é a gente estar aberto, disponível para aceitar seus projetos e desígnios. Procurar discernir qual é a sua vontade, confiar nele, aceitar. E buscar fazer da melhor maneira possível o que Deus pede de nós na missão que nos confia. É com esse espírito que eu encaro esta nomeação. Com muita humildade. Não por méritos próprios, mas vendo que Deus tem os seus caminhos. Se o Papa chama, então também Deus fala, através das mediações humanas, daqueles que Ele colocou à frente de sua Igreja. Uma vez que a gente se dispôs a servir a Deus, a servir à Igreja, desde a ordenação sacerdotal, não há como voltar atrás. É olhar sempre para frente e procurar servir da melhor maneira possível.