Religião não foi causa da guerra na Bósnia, mas sim de reconciliação

01/11/2010 09:25

Entrevista com Ivan e Mirela Cigic, jornalistas e diretores de cinema

 

SARAJEVO, domingo, 31 de outubro de 2010 (ZENIT.org) – Um programa educativo patrocinado pela Igreja Católica em Bósnia-Herzegóvina está contribuindo para reconciliar e criar relações inter-religiosas.

Nesta entrevista, Ivan e Mirela Cigic, jornalistas e diretores de cinema católicos, falam sobre o programa Escolas para a Europa, que reúne estudantes católicos, ortodoxos e muçulmanos.

O casal explicou como esta iniciativa foi decisiva para construir um futuro em um país que tenta seguir adiante após o trauma da guerra nos Bálcãs.

Vocês dois sofreram a guerra, viveram com a guerra. O que isso supôs para vocês?

Ivan: Eu tinha acabado de me formar na universidade. Havia voltado para casa, para procurar emprego, e cerca de 3 meses depois, começou a guerra.

O choque não é fácil de descrever. Eu estava na cama às seis da manhã, quando escutei os tiros antiaéreos contra os aviões que se aproximavam. Naquele dia, morreram 6 pessoas da minha cidade em 5 minutos, e 4 delas tinham menos de 20 anos.

O segundo choque foi ver todos aqueles refugiados que vinham da região de Mostar, alguns deles com 80 anos, que jamais tinham abandonado seus povoados. Era possível ver em seus olhos a confusão e o choque; eles não conseguiam compreender o que estava acontecendo.

As equipes médicas atendiam suas feridas, mas eles estavam chocados, meio aturdidos. Eu não podia compreender que necessidade havia de tudo aquilo.

Qual foi a pior experiência para você, Mirela?

Mirela: A pior experiência para mim foi a de ter de abandonar a nossa casa.

Eu já tinha visto refugiados antes e sentia pena deles, mas, de alguma forma, eu achava que isso nunca aconteceria comigo; sentia que não duraria muito e que sobreviveríamos, mas quando o ônibus veio recolher as mulheres e crianças e nos obrigaram a sair das nossas casas, então chegou o pior. Eu não queria deixar meu pai e meu irmão. Disseram que haviam encontrado vagas em hotéis da costa adriática e que era algo bom. Obrigaram-nos a ir.

Para mim, a pior experiência foi ser refugiada e ver-me obrigada a fazer fila para receber farinha, óleo e arroz. Foi humilhante e degradante. Eu era jovem demais para trabalhar e queria estar ativa e fazer algo, e conseguir que ninguém tivesse dó de nós; queria fazer alguma coisa.

Como é a relação agora entre as pessoas, depois de mais de 10 anos desde do final da guerra?

Ivan: É difícil de dizer. Há certa desconfiança, mas posso lhe garantir que também existe boa vontade em todos. Acho que todos os que sofreram a guerra, ainda que tenha sido por um só dia, não gostariam de voltar a viver isso, seja do lado que for, e tenho certeza de que a minha geração não terá outra. No entanto, há desconfiança.

Sempre dá esse medo de que o que aconteceu uma vez possa voltar a acontecer. Eu aprendi que existe uma linha muito fina entre a guerra e a paz. Pensei que nunca aconteceria e ainda assim eu a vivi e a sofri; por isso se dá esse medo de que possa voltar a acontecer e, ainda assim, há essa esperança e boa vontade em todos, para que não ocorra novamente.

Qual é a situação dos católicos no seu país?

Ivan: O que estamos tentando agora, há quase 10 anos, é estabelecer uma espécie de mecanismo que previna contra a dominação de um grupo em particular, algo que não funcionou até agora.

Ser croata e católico na Bósnia-Herzegóvina é difícil, porque somos uma minoria, ainda que haja certas zonas nas quais a maioria é católica. Há tão pouco espaço aqui e em Bósnia-Herzegóvina, que os católicos croatas se tornaram uma minoria, pela guerra e pela limpeza étnica, e estamos pedindo desesperadamente alguma forma de proteção frente à dominação.

O que você teme para o país?

Mirela: Meu medo e decepção se dirigem à União Europeia e às suas atividades em Bósnia-Herzegóvina. Seus discursos estão repletos de promessas multiétnicas, mas sempre que os católicos criatas suplicam pela reconstrução das suas igrejas e povoados, não têm resposta. Não compreendemos qual é o problema. E por isso temos medo do futuro.

Somos cerca de 450 mil católicos, dos que restaram, e cada ano perdemos gente assim; daqui a 10 anos, quem sobrará?

Se as pessoas não têm trabalho, nem possibilidade de praticar sua religião, nem possibilidade de educar seus filhos na própria língua, então não há motivos para permanecer aqui. Podemos pedir mais sacrifícios, mas... até quando?

Você poderia nos contar brevemente o que é o projeto Escolas para a Europa e por que é tão importante?

Mirela: É uma luz na escuridão na Bósnia. Escolas para a Europa é um projeto importante porque oferece às pessoas, sobretudo aos católicos que ainda estão no centro e no norte da Bósnia, uma razão para permanecer e educar-se aqui.

A maioria da população católica pressionava a Igreja Católica para que fizesse alguma coisa, porque, do contrário, especialmente os jovens, iriam embora.

Os jovens sofreram durante a guerra e, depois de 10 anos, nada mudou no âmbito econômico. Após o conflito, não houve guerra, mas tampouco houve paz. Então, as pessoas foram se cansando e querem encontrar um futuro melhor em qualquer outro lugar.

Como começou esse projeto?

Ivan: Os pais pensaram que um colégio com sua própria língua – croata – seria a única oportunidade e a única razão para que seus filhos permanecessem. O primeiro projeto destes colégios foi levado a cabo e se abriu um em Sarajevo. A guerra ainda estava em marcha. A cidade era bombardeada cada dia.

O bispo Pero Sudar conta a história do primeiro encontro com os pais envolvidos neste projeto: estava acontecendo um forte bombardeio e o bispo pensou que ninguém apareceria, porque era impossível abandonar os refúgios. Quando chegou e viu o corredor vazio, disse: “Lá se foi o projeto”. Então, uma irmã franciscana se aproximou dele e disse: “Os pais estão lhe esperando”. O bispo perguntou: “Onde estão?”. “Estão no ginásio.” “Por que no ginásio?” “Porque há mais de 500 pais.”

E foi assim, sob um forte bombardeio, que 500 pais de família procuraram garantir que haveria um futuro para os seus filhos. Este foi o primeiro sinal de apoio ao projeto.

Então, o projeto Escolas para a Europa é essencial?

Mirela: Naquele momento, ninguém acreditava que essas escolas dariam fruto e vida, não somente para os croatas e seus filhos, mas para outros também.

Essas escolas em pouco tempo se tornaram as melhores escolas do estado e inclusive as crianças ortodoxas e muçulmanas começaram a frequentá-las. Não assistiam às aulas de religião, mas sim às de outras disciplinas, porque seus pais queriam a melhor educação para os seus filhos. Então, é realmente um projeto incrível e tem muito significado para as pessoas daqui.

Quantos colégios existem agora?

Ivan: Há colégios em Sarajevo, Zenitza e Tuzla. Havia um colégio em Konitz, uma pequena cidade perto de Mostar, mas, devido à emigração massiva dessa cidade, o colégio foi fechado. Imagine que antes da guerra havia 7 mil famílias croatas, mas agora não há nem 2 crianças. Isso ilustra o problema do qual falávamos. Agora estão preparando um novo colégio em Bihac. No total, são 5 colégios.

Vocês também são pais. São sinais como este símbolo de esperança que lhes ajudaria a permanecer em Bósnia-Herzegóvina?

Mirela: Esta é uma pergunta difícil. Nós, como qualquer casal, sempre tentamos garantir a melhor vida possível para nossos filhos, mas até agora tivemos esperança.

Mas... quando se sofre a guerra, quando você é pai com filhos, sempre há esse medo. É bom ficar ou é melhor ir para algum país no qual as coisas estejam melhores e onde é provável que não haja conflitos? Este é um pensamento constante diante dos nossos filhos. Si estivéssemos só nós, sobreviveríamos e enfrentaríamos isso.

Qual seria seu apelo à comunidade internacional?

Ivan: Somos felizes. Deus nos ajudou; Deus nos protegeu naquele momento em particular, mas lançamos um apelo a que a comunidade internacional considere mais uma vez as pressões as quais estamos submetidos para assimilar-nos ou para que abandonemos o nosso país, devido a que a ideia política atual que guia a comunidade internacional é que os católicos croatas não precisam se sentir acolhidos em sua própria terra.

Isso se deve à sua religião?

Ivan: Aqui, na Bósnia-Herzegóvina, temos experiência em trabalhar com a comunidade internacional, e cada vez que alguém menciona a religião ou qualquer crença – católica, ortodoxa ou muçulmana e a prática delas –, os membros da comunidade internacional têm medo da liberdade religiosa para praticar a própria fé.

Tenho a impressão de que preferiam que não praticássemos nenhuma religião, como se a religião fosse a causa da guerra. Acho que, quando se é um bom crente – católico, ortodoxo ou muçulmano –, nunca teria começado uma guerra.

Penso que deveriam nos incentivar a praticar a nossa fé e a encontrar-nos em um campo comum para vivermos em harmonia e para não ver na religião a causa dessa guerra.

Então, não é a religião que os dividiu no passado?

Mirela: A forma mais fácil de explicar a guerra é culpar a religião, mas na verdade a causa foi econômica. Somos um povo capaz de viver unido. Nós – católicos, ortodoxos ou muçulmanos – já vivemos juntos durante séculos. Podemos viver juntos novamente, apesar do conflito. Temos amigos entre os ortodoxos, muçulmanos e sérvios. É claro que há medo, mas podemos superá-lo e podemos construir nosso futuro unidos.

Só pedimos à comunidade internacional que nos ajude a ser construtivos e a não culpar a religião por este conflito, porque a religião nunca o causou.

Se estabelecerem uma constituição e uma lei que proteja os direitos humanos, a liberdade de religião e os direitos da minoria, então não haverá esse medo, mas isso ainda não se realizou de forma clara.

* * *

Esta entrevista foi realizada por Mark Riedemann para "Onde Deus Chora", um programa rádio-televisivo semanal produzido por Catholic Radio and Television Network, (CRTN), em colaboração com a organização católica Ajuda à Igreja que Sofre.

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